segunda-feira, 27 de outubro de 2014

Análise: Um Cântico Para Leibowitz, de Walter M. Miller Jr.


Um livro com muitas passagens de notável poder.

Um oceano personificado em livro. Um mergulho em queda livre a um futuro caótico ao qual estamos fadados. Um retrato da natureza humana, com ênfase na  Teoria da História Cíclica, que determina que forças como a religião/espiritualismo, filosofia, moral, política e ciência, determinam as ações humanas, guiando-nos sempre a um ciclo de eventos.


+ Sobre a Obra

Um Cântico para Leibowitz é considerado um clássico da ficção científica e obra prima do autor. Aclamado pela crítica, atraindo respostas de jornais e revistas normalmente desatentos à ficção científica. Recebeu o Prêmio Hugo, como melhor romance de ficção científica de 1960. Atual e sempre presente no mercado literário, é considerado o melhor romance escrito sobre apocalipse nuclear.

Após ter sido quase aniquilada por um holocausto nuclear, a humanidade mergulha em desolação e obscurantismo. Os anos de loucura e violência que se seguiram ao Dilúvio de Fogo arrasaram o conhecimento acumulado por milênios. A ciência, causadora de todos os males, só encontrará abrigo na Ordem Albertina de São Leibowitz, cujos monges se dedicam a recolher e preservar os vestígios de uma cultura agora esquecida. Seiscentos anos depois da catástrofe, na aridez do deserto de Utah, o inusitado encontro de um jovem noviço com um velho peregrino guarda uma surpreendente descoberta, um elo frágil com o século 20. Cobrindo mil e oitocentos anos de história futura, "Um cântico para Leibowitz" narra a perturbadora epopeia de uma ordem religiosa para salvar o saber humano. 
+ Análise


"Há livros que devem ser saboreados, outros devorados e poucos mastigados e digeridos." - Francis Bacon

Um Cântico para Leibowitz é um romance intelectual e com doses de um humor que serão brindadas com muitos sorrisos espontâneos dos leitores; com abordagens inteligentes a respeito de diversos aspectos importantes e determinantes na vida dos seres humanos, sociais, morais, psicológicos, religiosos, filosóficos, etc. É também uma história com personagens construídos para falar às emoções e sentimentos do leitor, para nos chocar.

- Os Simplórios e a Simplificação

O livro é divido em três partes, tendo os acontecimentos da primeira parte ocorridos 600 anos após o evento que ficou conhecido como Dilúvio de Fogo, uma guerra nuclear de proporções mundiais que alterou a geografia de cidades, países e continentes, transformando quase todo lugar em um deserto radioativo. Logo após o Dilúvio de Fogo, uma parcela considerável dentre os sobreviventes resolveu impedir que uma catástrofe semelhante se batesse sobre a humanidade e, colocando sobre os cientistas e sábios a culpa pelo ocorrido, queimaram e destruíram todo conhecimento acumulado pela humanidade, com foco especial aos livros e toda forma de escrita. Esse acontecimento ficou conhecido como A Simplificação. Cientistas foram caçados e mortos e até mesmo pessoas letradas eram condenas. Dessa forma, o mundo conheceu um longo período de escuridão intelectual.

A atitude dos simplificadores em relação aos livros coloca esses aparentemente inofensivos objetos em foco. Eles deixam de ser "apenas livros" e passam a ser considerados armas extremamente perigosas e que devem ser banidas. A queima de livros apenas atesta o grande potencial e importância que tem o papel deles na vida do homem. Movidos pelo terror e desespero, os homens que ficaram conhecidos como simplificadores se rebelaram contra aqueles que fizeram uso do conhecimento e da ciência para instaurar flagelos no mundo e se viram dispostos a matar, se isso pusesse fim ao risco de um novo Dilúvio. O ódio dos simplórios não estava voltado aos livros em si, mas ao uso que as pessoas dariam ao conhecimento obtido por meio da leitura. Dessa forma "morreram" livros e leitores.

Esse é um dos elementos distópicos do livro, ele nos mostra um futuro onde a ignorância é lei. Nos leva a questionar se a ignorância não é preferível ao conhecimento. Se as descobertas, avanços e feitos científicos valem o risco da sempre presente possibilidade da hecatombe, da destruição em massa, das mazelas. 

A queima e destruição de livros, longe de ser uma artigo da ficção, ocorreu em diversos momentos da História e em diversas culturas. As motivações para levar adiante tal ato são muitas, como preconceito (queima  de exemplares do Alcorão por soldados estrangeiros em uma base americana), ideologias (Em 1497 Partidários Girolamo Savonarola recolheram livros e outros objetos de artes ou cosméticos que teriam a capacidade de incitar ao pecado queimando-os em praça pública), para impedir o acesso à determinadas informações, entre outros.

- A Memorabília

600 anos depois do Dilúvio e da Simplificação, em uma abadia fortificada em meio ao deserto, os monges da Ordem Albertiana de Leibowitz dão continuidade ao papel do seu fundador de encontrar e proteger os livros e escritos que sobreviveram ao Dilúvio por meio da Memorabília (acervo de livros e documentos recuperados). Copiar, memorizar, preservar e restaurar livros e documentos remanescentes são algumas das principais tarefas dos monges, que tem o propósito de guardar o conhecimento e sabedoria dos antigos e garantir que, quando os tempos de ignorância chegarem ao fim e a ciência voltar a erguer-se, fazer com que todos lembrem que foi a Igreja quem possibilitou esse avanço, esperando dessa forma exercer influência sobre a forma como esses conhecimentos serão aplicados, garantindo que seja para o bem e não para o mal.

Os monges, diferente dos simplórios, são aqueles que ressuscitam os livros dentre os mortos. Eles compreendem que os livros não representam perigo algum, pelo contrário, seu propósito é livrar os homens das consequências da ignorância, alimentar nosso eu racional, que nos diferencia das outras espécies, dando-nos conhecimento que, na visão dos monges, aliado a devoção a Deus, trará como resultado a harmonia entre os homens. Se por um lado temos livros queimados, por outro temos aqueles que são retirados das cinzas para distribuir conhecimento sobre o passado, presente, futuro. Sobre o mar, a terra e o céu. Sobre nós.

- Religião e Estado

Especialmente na parte 2 e 3 do livro, o autor cria um ambiente que transmite uma visão onde Igreja e Estado tentam conciliar seus interesses, sem nunca chegar a um consenso. O Estado possuem interesses mais imediatos, enquanto que a Igreja fala de coisas invisíveis e futuras, coisas para um tempo incerto. Os pontos de vista divergentes entre personagens céticos e religiosos são muito bem construídos pelo autor e são alguns dos momentos mais memoráveis da estória. Miller soube administrar muito bem ambos os pontos de vista.

Na última parte do livro, quando a ciência já se desenvolveu o suficiente para possibilitar viagens no espaço e novas corridas armamentistas, o Estado determina que as pessoas que forem afetadas pela radioatividade de tal forma que não tenha esperança de cura poderão optar pela eutanásia para acabar com o sofrimento. Obviamente a Igreja não vê isto com bons olhos e o leitor se verá em dois extremos, tentando definir aquilo que é moralmente "certo". As cenas que discorrem sobre esse tema estão entre as melhores que o livro oferece.

- Por fim...

Este é um dos poucos livros aos quais Francis Bacon se refere e deve ser mastigado e digerido, mas também saboreado e devorado. Está entre os livros mais memoráveis da minha vida. Personagens inesquecíveis cenas que jamais irão abandonar minha memória e reflexões que me seguirão até o fim da vida.

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