sábado, 28 de dezembro de 2013

Análise: O Mapa do Tempo, de Felix J. Palma


Um Steampunk altamente recomendado. 

Trata-se de um daqueles livros que renova o amor que sentimos pela leitura e nos traz à mente o motivo pelo qual amamos tanto essa atividade tão única que é o ato de ler e que transforma o leitor inevitavelmente.

"O que me espera na direção que não escolho?"

Com essa indagação, Palma nos introduz no universo que ele elaborou e nos permite incorporar os corpos feitos de tinta e papel dos inúmeros personagens que vagam por uma Londres do século XIX, onde a ciência avança a cada dia e homens e mulheres de renome vivem suas vidas em seus casarões e mansões, alheios ao sofrimento dos pobres miseráveis que foram fadados a viverem uma vida em uma Londres suja e repleta de perigos, onde a vida parecia transcorrer em uma torrente de lama imunda.

"Nunca conseguiu evitar uma incômoda vergonha ao se ver bisbilhotando um mundo alheio com o frio interesse de quem estuda os insetos, mas com o tempo sua repulsa se transformou em uma inevitável impiedade pelas almas que habitavam aquele esgoto em que a cidade jogava seus dejetos humanos... A miséria sempre de mãos dadas com a riqueza... enquanto o perfil de Londres mudava com os avanços da ciência, enquanto os cidadãos dos bairros ricos se divertiam gravando os latidos de seus cães no disco de papelão parafinado dos fonógrafos ou falando por telefones iluminados com lâmpada elétrica Robertson, enquanto esposas traziam os filhos ao mundo por entre as névoas do clorofórmio, Whitechapel se mantinha alheio a tudo isso, impermeável com sua couraça de podridão, afogado em sua própria miséria. Ali, a pobreza mostrava sua face mais abjeta. Ali sempre soava a melodia doentia e tenebrosa..."

Adrew é o filho primeiro de seu pai, portanto, herdeiro de sua fortuna e não há o que ser feito com relação a isso, pois essa é uma daquelas leis da sociedade que foi estabelecida por alguém e que perdura, não apenas como tradição, mas como legislação ou até mesmo destino, vontade divina. A questão é que Andrew não está interessado em dedicar o tempo de sua vida única às reuniões e aos empreendimentos próprios de quem possui muito dinheiro e de quem habitua-se a viver apenas para multiplicá-lo e legar sua atividade a sua prole que assim seguirá o exemplo quase genético que só uma sociedade pode impor aos indivíduos que dela fazem parte. Não, Andrew vê o mundo sob uma lente diferente, um pouco menos suja que as demais, porém o suficiente para fazê-lo sentir que determinados comportamentos tornam a vida um inferno gelado na terra, um recipiente vazio ou repleto apenas de dinheiro, que nada mais é do que papel ao qual se atribui valor e que por si só não confere beleza ou significado algum à existência. Ele porém limita-se apenas a detestar sua sina já que não possui a fibra necessária para negá-la e traçar outra rota na vida.



Mas a vida as vezes se encarrega de nos mostrar uma passagem que antes não havia sido percebida, um caminho até então obscurecido pela vida cotidiana e pela futilidade dos dias, cabe a nós ignorá-la e continuar andando sob a calçada das tradições insossas da sociedade ou simplesmente remover os detritos de nossos sapatos, arrancar a poeira que durante anos esteve sob e sobre nossos pés e fazer o que será a maior escolha de todas as nossas vidas. E para prazer do leitor, esta última é a escolha feita por Andrew, do contrário teríamos relatos enfadonhos de como um jovem teve que se tornar homem para assumir os negócios de seu progenitor e todas as coisas próprias de pessoas que vivem para a ganância... Mas como já revelei, as coisas não ocorreram assim.

E é neste ponto que Andrew se torna uma inspiração, quebrando as expectativas de todos aqueles que depositaram sobre ele uma responsabilidade não apenas cruel mas desprovida de toda a razão, pois a vida, acredito, não tem nada a ver com números e com quanto papel você conseguiu acumular, mas com eventos eternamente mais elevados.

Charles e Andrew são primos que mais podem ser considerados irmãos, e suas semelhanças físicas não poderiam ser mais contrastantes com suas antagônicas personalidades com as quais ambos aprenderam a conviver e que sustentavam-se uma a outra. Andrew, reflexivo, realista, vê a realidade sob uma perspectiva monocromática, com tons distintos de um negro irremovível. Charles, sorridente, alegre, sociável, enxerga na vida toda oportunidade de desfrutar os prazeres da mesma, tantos os da carne quanto os da mente. Porém, como jamais alguém poderia cogitar, Charles se torna, de um modo bastante incomum e de forma totalmente desproposital, responsável pela mudança drástica na vida de Andrew. Em uma visita casual a casa do primo, Andrew se depara com a o retrato pintado e emoldurado em um quadro de uma mulher, quadro este que Charles havia posto ali como uma espécie de piada particular em que seu pai era o inconsciente alvo da graça. Andrew questiona a respeito da modelo que pousara para foto e essa revelação é a passagem que a vida decidiu, por meio de Charles, escancarar diante dele, e sem pensar duas vezes, ele entra por ela e caminha por lugares que o levarão a um futuro jamais previsto.

Por meio da perspectiva de Andrew, sem desconsiderar as oportunas intromissões do autor, conhecemos Merie Jannet, uma prostituta holandesa de Whitechapel. Marie é apenas um dos diversos retratos que mostram até onde as injustiças e a depravação urbana podem levar uma pessoa a fazer... no caso de Marie, vender seu corpo para comprar o alimento que a manteria viva, ainda que para viver uma vida miserável. Por meio de Marie me foi possível pensar no que eu estaria disposto a fazer para continuar vivendo. Se a vida houvesse me lançado na miséria, se os atos de meus antepassados, como uma mão poderosa, houvessem me guiado ao esgoto da sociedade, do que eu seria capaz pela vida? Está não é uma pergunta das mais reflexivas, pois eu nem mesmo seria quem sou agora se os fatos de minha existência houvessem sido outros, teria tido outras experiências, outras influências e uma realidade diferente que me levaria a encarar a vida de um modo diferente do atual, mas Merie já havia sido uma modelo, já havia experimentado o lado menos amaldiçoado da vida e não vejo porquê cada ser humano não esteja propício ao mesmo destino de Marie: ser tragado pela queda e pela decadência. Se assim o fosse, como e o que eu faria para me manter vivo? Não sei. Mas posso afirmar com veemência que me manteria vivo, custasse o que custasse... pois no fundo todos consideramos que a vida vale a pena e na vida, os dados estão sempre sendo jogados.

Neste mesmo contexto somos apresentados a Jack, o Estripador, que saiu da realidade para caminhar pela ficção e creio que não exista forma melhor de conhecer o caráter de um indivíduo vil do que pela ficção. Jack é um serial killer e suas vítimas são sempre as prostitutas de East End, em Whitechapel. Ao que indica os diligentemente estripados corpos de suas vítimas, Jack possuía conhecimentos de anatomia suficiente para realizar cortes com uma perfeição clínica e possuía algum interesse em conhecer o corpo feminino "mais a fundo". Jack escolhe as prostitutas de Whitechapel para realizar suas cirurgias mortais, e podemos apenas cogitar o porquê. Ao que parece, Jack tenta amenizar, por meio de uma moral pessoal, o peso dos seus crimes, cometendo-os contra aquelas que seriam vistas como a escória humana, as nada importantes mulheres que vivem suas vidas insignificantes em um bairro insignificante de Londres, que entregam-se ao prazer da carne e destroem famílias, que alimentam a luxúria no homem e não resiste em fazê-los "pecar". Talvez Jack considerasse que se tratava de um sacrifício válido, pois com o conhecimento anatômico que adquiria com as mortes que causaria viria a evolução na medicina. Nesse contexto, Jack matava algumas para fazer viver vários. Isso me lembra algumas das manifestações da ira divina que, conforme o relato bíblico, causaram as destruição de nações inteiras ou de um grupo específico. Penso que seja bem provável que Jack seguiu o exemplo daquele que deve por todos ser seguido e reverenciado. Dentro dos parâmetros divinos, jamais podemos condenar ou acusar Jack, pois seu propósito traria um bem maior, estou certo?

Um pouco, apenas um pouco alheio à vida desses seus contemporâneos, Gilliam Murray traz à tona o que aparenta ser a maior descoberta de todos os tempos: Uma forma de viajar no tempo, especificamente ao ano 2000, quando já não restam muitos seres humanos e os poucos que restaram empreendem uma guerra contra os autômatos, máquinas que adquiriram consciência e se rebelaram contra os serem humanos. Ao menos essa a história contada por Gilliam, que por meio de magia, como ele mesmo alega, conseguiu a proeza das viagens temporais. Gilliam acredita que os autômatos do futuro são uma evolução dos brinquedos mecânicos de seu presente, e defende que uma forma de evitar a guerra e destruição futuros é pondo um fim nesse empreendimento. Gilliam vê na ciência e suas evoluções um futuro caótico, de ruína e completa destruição, mortes e dor. Por afirmar trabalhar com magia, Gilliam é alvo do descrédito da sociedade científica, muito influente já em sua época. Os tripulantes da Viagens Temporais Murray são levados ao momento futuro em que uma batalha decisiva está acontecendo, onde o bravo Capitão Shackleton confronta o Salomão, rei dos autômatos. Charlatão ou não, Gilliam pretende levar adiante seus empreendimentos, ainda que precise se tornar um criminoso que não pensa duas vezes em eliminar qualquer ameaça a seus projetos. Gilliam é o retrato daqueles que viveram uma vida simples, em um emprego simples em meio à pessoas simples, que admiram e aspiram a vida de grandes homens, grandes não apenas em termos econômicos, mas em efeitos e impactos causados à sociedade. Gilliam desejava inverter a sua realidade, queria deixar de admirar a pintura no quadro para se tornar a própria pintura admirada... Mas não foi apenas isso que levou o Gilliam simples, construtor de estufas a tornar-se o Gilliam, que conduz os homens ao ano 2000. Um diálogo, uma resposta, o orgulho ferido guiaram Gilliam ao pedestal da Viagens Temporais Murray, em suma, a sua conversa com o renomado autor de A Máquina do Tempo guiou os eventos de sua história.

H.G. Wells, um homem magro, pálido, com um fino bigode, autor do livro que veio a se tornar um Clássico da Ficção Científica (em sua época, Romance Científico) A Máquina do Tempo. Mas antes disso, Wells precisou ser levado, como todo homem, a trilhar o caminho que levou seu nome à mente das pessoas, que o tornou o quadro admirado. Bastante intimidado pela mãe, Wells viveu uma vida que replicava a vontade da mesma, por muito tempo abdicou de seus projetos e objetivos em prol do bem querer de sua mãe, cuja perspectiva de inseto a fazia preferir ter um farmacêutico na família que um escritor ou professor, afinal de contas, que benefício pode obter um homem com letra e papel? Mas, como sabemos, Wells não ficou por muito tempo sob o jugo de sua mãe, decidiu começar e trilhar seu rumo, ainda que para isso tenha precisado de um incentivo um tanto mortal. Após ficar doente, Wells descobre que o que ele realmente gosta de fazer é escrever e que essa é a atividade que dá sentido à sua existência. Após publicar um conto científico em uma revista com a temática das viagens no tempo vividas pelo cientista (um tanto louco) Nebogipfell, Wells tem de lhe dar com a frustração, pois ao que parece, viajar no tempo é tão possível em sua época quanto voar em uma ave de metal. Ao que parece os cidadãos de Londres não estão muito interessado em viagens no tempo, e a ideia de Wells parece inverossímil e fantasiosa demais para ser digna de algum crédito. Que ideia boba, não é mesmo? Wells quase desiste de levar adiante seu papel como escritor, já não consegue colocar no papel as maravilhas que vagam em sua mente, já não tem motivação. Até que ele recebe o convite de um paciente de um hospital, um paciente que também saiu do cenário das pessoas simples para ocupar um lugar de destaque, mas em um quadro desagradavelmente assustador. E Wells aceita o convite feito pelo Homem Elefante, o convite que muda toda a vida de Wells, uma mudança que muda a vida de toda Londres.

O Homem Elefante é uma aberração humana. Ficou assim conhecido devido à dimensão de seus membros direitos, que eram imensas e não paravam de crescer devido a uma rara, até então não registrada, doença que deveria lhe causar dores inimagináveis, especialmente psicológicas. Mas não era desse modo que encarava sua realidade. Depois de haver sido resgatado de um circo que o exibia como atração principal, passou a viver sob os cuidados de um hospital, isso depois de haver sido rejeitado por todos os outros da cidade. Merrick, como se chamava, vivia isolado em uma sala nos andares superior, e muito pouco habitado, do hospital. Depois de um tempo, Merrick se tornou o foco dos debates no ramo da ciência voltado à medicina e alvo das conversas de toda Londres, afinal ele era o único de sua “espécie”. Merrick preferia acreditar que havia vindo ao mundo com um propósito especial, o de testar a alma humana. Um hábito de Merrick era escrever cartas destinadas às pessoas de renome que viviam em sua época, quando aceitos, aqueles que foram convocados deveriam encarar a face de Merrick e com ele conversar, deveriam encarar os descomunais braços e mãos direitos e por eles serem servidos, e acima de tudo, deveriam notar como um homem tão desafortunado encarava a vida de um modo que fazia parecer que era como qualquer outro ser humano. De fato, encarar a realidade de Merrick poderia despertar apenas duas reações no indivíduo: repulsa ou pena. E esse era o teste pelo qual deveriam passar. Claro, o indivíduo não poderia saber como qual seria sua reação, e ir até lá poderia revelar mais do que estivesse disposto a saber.

Quando encarou a face de Merrick, Wells descobriu de que espécie de fibra ele era feito. Ao final do diálogo, Wells levou consigo aquele que viria a ser o seu tesouro mais estimado e a sua maior motivação para seguir em frente. Tratava-se de um cesto feito pelo próprio Merrick. Um cesto que poderia ser comum se o seu criador não fosse tão incomum. Um cesto que inspirou Wells a olhar com uma perspectiva inteiramente nova para as possibilidades e que o levou a escrever uma de suas mais admiradas obras... A Máquina do Tempo.

Gilliam Murray não era dado à leitura e possuía uma vida estável. Após a morte de seu pai, Gilliam se viu diante de uma biblioteca que agora era sua, e que havia sido construída apenas para preencher um espaço vazio e conferir um certo status à família e à residência. Então, aos 20 anos de idade, Gilliam descobriu o que viria a ser um de seus maiores prazeres, a leitura. Algumas pessoas não conseguem enxergar o real poder e a real grandeza de um ato aparentemente não tão poderoso e não tão grandioso assim. Mas uma simples reflexão a respeito do que implica a leitura de um livro e a leitura de um modo geral, torna esse fato evidente como a imensidão do mar. E Gilliam, o construtor de estufas, encontra A Máquina do Tempo, escrita por um homem chamado H.G. Wells, de quem até então não ouvira falar e motivado por uma onda de livros de ficção que profetizam futuros para terra, por sua vez também inspirados em Wells, Gilliam decide juntar-se ao grupo de escritores que vaticinam “possíveis” futuros para a humanidade. Após escrever sua estória, onde os autômatos são a causa da destruição da humanidade, Gilliam entrega a Wells, a quem admira muito, um exemplar de seu livro não publicado para que o mesmo leia e apresente seu parecer a respeito da obra. Com alguma dificuldade Wells conclui a leitura do livro e é visitado por Gilliam, que deseja saber o que o autor tem a dizer de sua obra. Wells fica indeciso quanto a falar a verdade, que aquele e um péssimo livro, com uma péssima escrita e um enredo totalmente inverossímil e ver a reação de Gilliam, ou amenizar a realidade com algumas meias-verdades, menos avassaladoras. Depois de muito pensar, ele opta pela primeira opção. Gilliam, em um acesso por pouco incontido, sai de lá não para publicar seu livro e se tornar um escritor, mas o dono do maior empreendimento de todos, ele torna a viajem no tempo mais que ficção, ele a traz para a realidade. E Wells se arrepende amargamente da escolha que fez.

Há muitas vidas presentes nas páginas escritas por palma, como a Claire, uma jovem aristocrata que se vê como alguém que nasceu no século errado, que não vê sentido nos costumes e no modo de ver as coisas que impera em sua sociedade e que é guiada pelos eventos à um futuro que em parte se deve a seu caráter revolucionário em parte, por que um dia um homem decidiu escrever sobre uma Máquina que faz o homem viajar no tempo. Há também o Tom, um pobre miserável que precisa, as vezes, recorrer a meios nada legais para conseguir manter-se em vida e com um teto sob sua cabeça, um daqueles cuja vida decidira agraciar com uma vida em uma Londres onde viver é tão fácil quanto tentar sobreviver depois de ser lançado em um rio com mãos e pés amarrados, preso a uma pedra de quilos e quilos, que por sinal, é uma das coisas que Tom tem de fazer, e tudo isso, ainda que ele não saiba, graças a uma discussão sobre as qualidades de escrita daquele que um dia viria a ser seu patrão, Gilliam Murray.

Palma cria um universo muito semelhante ao nosso no quesito escolhas e consequências. A nossa existência é uma sucessão de eventos, como um lago onde a todo instante gostas de chuva estão a cair, formando círculos de ondas que se encontram com outros círculos e com outros e ainda outros, sem sessar. Assim são nossas vidas, por meio de nossas escolhas, palavras, ações, afetamos não apenas a nossa existência, mas a de outros, mudamos sua história, seus pensamentos, suas atitudes, o rumo de todas as coisas. Quantas vezes nos pegamos pensando em como seria nossa vida se... e se não houvéssemos ido aquele encontro... e se não houvesse me mudado de casa... e se eu jamais tivesse coragem para abandonar aquela ideia... e se eu jamais houvesse tragado minha primeira droga... quantas lágrimas minha família não teria derramado... quantos amigos eu não teria perdido... quantas vidas não teriam sido... enfim, “o que me espera na direção que não escolho?”.


Por Henrique Magalhães

Nenhum comentário:

Postar um comentário