Trata-se de um daqueles livros
que renova o amor que sentimos pela leitura e nos traz à mente o motivo pelo
qual amamos tanto essa atividade tão única que é o ato de ler e que transforma o leitor inevitavelmente.
"O que me espera na direção
que não escolho?"
Com essa indagação, Palma nos introduz
no universo que ele elaborou e nos permite incorporar os corpos feitos de tinta
e papel dos inúmeros personagens que vagam por uma Londres do século XIX, onde
a ciência avança a cada dia e homens e mulheres de renome vivem suas vidas em
seus casarões e mansões, alheios ao sofrimento dos pobres miseráveis que foram
fadados a viverem uma vida em uma Londres suja e repleta de perigos, onde a
vida parecia transcorrer em uma torrente de lama imunda.
"Nunca conseguiu evitar uma
incômoda vergonha ao se ver bisbilhotando um mundo alheio com o frio interesse
de quem estuda os insetos, mas com o tempo sua repulsa se transformou em uma
inevitável impiedade pelas almas que habitavam aquele esgoto em que a cidade
jogava seus dejetos humanos... A miséria sempre de mãos dadas com a riqueza...
enquanto o perfil de Londres mudava com os avanços da ciência, enquanto os
cidadãos dos bairros ricos se divertiam gravando os latidos de seus cães no
disco de papelão parafinado dos fonógrafos ou falando por telefones iluminados
com lâmpada elétrica Robertson, enquanto esposas traziam os filhos ao mundo por
entre as névoas do clorofórmio, Whitechapel se mantinha alheio a tudo isso,
impermeável com sua couraça de podridão, afogado em sua própria miséria. Ali, a
pobreza mostrava sua face mais abjeta. Ali sempre soava a melodia doentia e
tenebrosa..."
Adrew é o filho primeiro de seu
pai, portanto, herdeiro de sua fortuna e não há o que ser feito com relação a
isso, pois essa é uma daquelas leis da sociedade que foi estabelecida por alguém
e que perdura, não apenas como tradição, mas como legislação ou até mesmo
destino, vontade divina. A questão é que Andrew não está interessado em dedicar
o tempo de sua vida única às reuniões e aos empreendimentos próprios de quem
possui muito dinheiro e de quem habitua-se a viver apenas para multiplicá-lo e legar
sua atividade a sua prole que assim seguirá o exemplo quase genético que só uma
sociedade pode impor aos indivíduos que dela fazem parte. Não, Andrew vê o
mundo sob uma lente diferente, um pouco menos suja que as demais, porém o
suficiente para fazê-lo sentir que determinados comportamentos tornam a vida um
inferno gelado na terra, um recipiente vazio ou repleto apenas de dinheiro, que
nada mais é do que papel ao qual se atribui valor e que por si só não confere beleza ou significado
algum à existência. Ele porém limita-se apenas a detestar sua sina já que não
possui a fibra necessária para negá-la e traçar outra rota na vida.
Mas a vida as vezes se encarrega
de nos mostrar uma passagem que antes não havia sido percebida, um caminho até então obscurecido pela vida cotidiana e pela futilidade dos dias, cabe a nós
ignorá-la e continuar andando sob a calçada das tradições insossas da sociedade
ou simplesmente remover os detritos de nossos sapatos, arrancar a poeira que
durante anos esteve sob e sobre nossos pés e fazer o que será a maior escolha
de todas as nossas vidas. E para prazer do leitor, esta última é a escolha
feita por Andrew, do contrário teríamos relatos enfadonhos de como um jovem
teve que se tornar homem para assumir os negócios de seu progenitor e todas as
coisas próprias de pessoas que vivem para a ganância... Mas como já revelei, as
coisas não ocorreram assim.
E é neste ponto que Andrew se
torna uma inspiração, quebrando as expectativas de todos aqueles que depositaram
sobre ele uma responsabilidade não apenas cruel mas desprovida de toda a razão,
pois a vida, acredito, não tem nada a ver com números e com quanto papel você
conseguiu acumular, mas com eventos eternamente mais elevados.
Charles e Andrew são primos que
mais podem ser considerados irmãos, e suas semelhanças físicas não poderiam ser
mais contrastantes com suas antagônicas personalidades com as quais ambos
aprenderam a conviver e que sustentavam-se uma a outra. Andrew, reflexivo,
realista, vê a realidade sob uma perspectiva monocromática, com tons distintos
de um negro irremovível. Charles, sorridente, alegre, sociável, enxerga na vida
toda oportunidade de desfrutar os prazeres da mesma, tantos os da carne quanto
os da mente. Porém, como jamais alguém poderia cogitar, Charles se torna, de um
modo bastante incomum e de forma totalmente desproposital, responsável pela
mudança drástica na vida de Andrew. Em uma visita casual a casa do primo,
Andrew se depara com a o retrato pintado e emoldurado em um quadro de uma
mulher, quadro este que Charles havia posto ali como uma espécie de piada
particular em que seu pai era o inconsciente alvo da graça. Andrew questiona a respeito da
modelo que pousara para foto e essa revelação é a passagem que a vida decidiu,
por meio de Charles, escancarar diante dele, e sem pensar duas vezes, ele entra
por ela e caminha por lugares que o levarão a um futuro jamais previsto.
Por meio da perspectiva de
Andrew, sem desconsiderar as oportunas intromissões do autor, conhecemos Merie
Jannet, uma prostituta holandesa de Whitechapel. Marie é apenas um dos diversos
retratos que mostram até onde as injustiças e a depravação urbana podem levar uma
pessoa a fazer... no caso de Marie, vender seu corpo para comprar o alimento
que a manteria viva, ainda que para viver uma vida
miserável. Por meio de Marie me foi possível pensar no que eu estaria disposto a fazer para continuar vivendo. Se a vida houvesse me lançado na miséria, se os
atos de meus antepassados, como uma mão poderosa, houvessem me guiado ao esgoto
da sociedade, do que eu seria capaz pela vida? Está não é uma pergunta das mais
reflexivas, pois eu nem mesmo seria quem sou agora se os fatos de minha
existência houvessem sido outros, teria tido outras experiências, outras
influências e uma realidade diferente que me levaria a encarar a vida de um
modo diferente do atual, mas Merie já havia sido uma modelo, já havia
experimentado o lado menos amaldiçoado da vida e não vejo porquê cada ser
humano não esteja propício ao mesmo destino de Marie: ser tragado pela queda e pela
decadência. Se assim o fosse, como e o que eu faria para me manter vivo? Não
sei. Mas posso afirmar com veemência que me manteria vivo, custasse o que
custasse... pois no fundo todos consideramos que a vida vale a pena e na vida,
os dados estão sempre sendo jogados.
Neste mesmo contexto somos
apresentados a Jack, o Estripador, que saiu da realidade para caminhar pela
ficção e creio que não exista forma melhor de conhecer o caráter de um
indivíduo vil do que pela ficção. Jack é um serial killer e suas vítimas são
sempre as prostitutas de East End, em Whitechapel. Ao que indica os
diligentemente estripados corpos de suas vítimas, Jack possuía conhecimentos de
anatomia suficiente para realizar cortes com uma perfeição clínica e possuía
algum interesse em conhecer o corpo feminino "mais a fundo". Jack
escolhe as prostitutas de Whitechapel para realizar suas cirurgias mortais, e
podemos apenas cogitar o porquê. Ao que parece, Jack tenta amenizar, por meio
de uma moral pessoal, o peso dos seus crimes, cometendo-os contra aquelas que
seriam vistas como a escória humana, as nada importantes mulheres que vivem
suas vidas insignificantes em um bairro insignificante de Londres, que
entregam-se ao prazer da carne e destroem famílias, que alimentam a luxúria no
homem e não resiste em fazê-los "pecar". Talvez Jack considerasse que
se tratava de um sacrifício válido, pois com o conhecimento anatômico que
adquiria com as mortes que causaria viria a evolução na medicina. Nesse
contexto, Jack matava algumas para fazer viver vários. Isso me lembra algumas
das manifestações da ira divina que, conforme o relato bíblico, causaram as
destruição de nações inteiras ou de um grupo específico. Penso que seja bem
provável que Jack seguiu o exemplo daquele que deve por todos ser seguido e
reverenciado. Dentro dos parâmetros divinos, jamais podemos condenar ou acusar
Jack, pois seu propósito traria um bem maior, estou certo?
Um pouco, apenas um pouco alheio
à vida desses seus contemporâneos, Gilliam Murray traz à tona o que aparenta
ser a maior descoberta de todos os tempos: Uma forma de viajar no tempo,
especificamente ao ano 2000, quando já não restam muitos seres humanos e os
poucos que restaram empreendem uma guerra contra os autômatos, máquinas que
adquiriram consciência e se rebelaram contra os serem humanos. Ao menos essa a
história contada por Gilliam, que por meio de magia, como ele mesmo alega,
conseguiu a proeza das viagens temporais. Gilliam acredita que os autômatos do
futuro são uma evolução dos brinquedos mecânicos de seu presente, e defende que
uma forma de evitar a guerra e destruição futuros é pondo um fim nesse
empreendimento. Gilliam vê na ciência e suas evoluções um futuro caótico, de
ruína e completa destruição, mortes e dor. Por afirmar trabalhar com magia,
Gilliam é alvo do descrédito da sociedade científica, muito influente já em sua
época. Os tripulantes da Viagens Temporais Murray são levados ao momento futuro
em que uma batalha decisiva está acontecendo, onde o bravo Capitão Shackleton
confronta o Salomão, rei dos autômatos. Charlatão ou não, Gilliam pretende
levar adiante seus empreendimentos, ainda que precise se tornar um criminoso
que não pensa duas vezes em eliminar qualquer ameaça a seus projetos.
Gilliam é o retrato daqueles que viveram uma vida simples, em um emprego
simples em meio à pessoas simples, que admiram e aspiram a vida de grandes
homens, grandes não apenas em termos econômicos, mas em efeitos e impactos
causados à sociedade. Gilliam desejava inverter a sua realidade, queria deixar
de admirar a pintura no quadro para se tornar a própria pintura admirada... Mas
não foi apenas isso que levou o Gilliam simples, construtor de estufas a
tornar-se o Gilliam, que conduz os homens ao ano 2000. Um diálogo, uma
resposta, o orgulho ferido guiaram Gilliam ao pedestal da Viagens Temporais
Murray, em suma, a sua conversa com o renomado autor de A Máquina do Tempo guiou os eventos de sua história.
H.G. Wells, um homem magro,
pálido, com um fino bigode, autor do livro que veio a se tornar um Clássico da
Ficção Científica (em sua época, Romance Científico) A Máquina do Tempo. Mas antes disso, Wells precisou ser levado, como
todo homem, a trilhar o caminho que levou seu nome à mente das pessoas, que o
tornou o quadro admirado. Bastante intimidado pela mãe, Wells viveu uma vida
que replicava a vontade da mesma, por muito tempo abdicou de seus projetos e
objetivos em prol do bem querer de sua mãe, cuja perspectiva de inseto a fazia
preferir ter um farmacêutico na família que um escritor ou professor, afinal de
contas, que benefício pode obter um homem com letra e papel? Mas, como sabemos,
Wells não ficou por muito tempo sob o jugo de sua mãe, decidiu começar e
trilhar seu rumo, ainda que para isso tenha precisado de um incentivo um tanto
mortal. Após ficar doente, Wells descobre que o que ele realmente gosta de
fazer é escrever e que essa é a atividade que dá sentido à sua existência. Após
publicar um conto científico em uma revista com a temática das viagens no tempo
vividas pelo cientista (um tanto louco) Nebogipfell, Wells tem de lhe dar com a
frustração, pois ao que parece, viajar no tempo é tão possível em sua época
quanto voar em uma ave de metal. Ao que parece os cidadãos de Londres não estão
muito interessado em viagens no tempo, e a ideia de Wells parece inverossímil e
fantasiosa demais para ser digna de algum crédito. Que ideia boba, não é mesmo?
Wells quase desiste de levar adiante seu papel como escritor, já não consegue
colocar no papel as maravilhas que vagam em sua mente, já não tem motivação.
Até que ele recebe o convite de um paciente de um hospital, um paciente que também
saiu do cenário das pessoas simples para ocupar um lugar de destaque, mas em um
quadro desagradavelmente assustador. E Wells aceita o convite feito pelo Homem
Elefante, o convite que muda toda a vida de Wells, uma mudança que muda a vida
de toda Londres.
O Homem Elefante é uma aberração
humana. Ficou assim conhecido devido à dimensão de seus membros direitos, que
eram imensas e não paravam de crescer devido a uma rara, até então não
registrada, doença que deveria lhe causar dores inimagináveis, especialmente
psicológicas. Mas não era desse modo que encarava sua realidade. Depois de
haver sido resgatado de um circo que o exibia como atração principal, passou a
viver sob os cuidados de um hospital, isso depois de haver sido rejeitado por
todos os outros da cidade. Merrick, como se chamava, vivia isolado em uma sala
nos andares superior, e muito pouco habitado, do hospital. Depois de um tempo,
Merrick se tornou o foco dos debates no ramo da ciência voltado à medicina e
alvo das conversas de toda Londres, afinal ele era o único de sua “espécie”.
Merrick preferia acreditar que havia vindo ao mundo com um propósito especial,
o de testar a alma humana. Um hábito de Merrick era escrever cartas destinadas
às pessoas de renome que viviam em sua época, quando aceitos, aqueles que foram
convocados deveriam encarar a face de Merrick e com ele conversar, deveriam
encarar os descomunais braços e mãos direitos e por eles serem servidos, e
acima de tudo, deveriam notar como um homem tão desafortunado encarava a vida
de um modo que fazia parecer que era como qualquer outro ser humano. De fato,
encarar a realidade de Merrick poderia despertar apenas duas reações no
indivíduo: repulsa ou pena. E esse era o teste pelo qual deveriam passar.
Claro, o indivíduo não poderia saber como qual seria sua reação, e ir até lá
poderia revelar mais do que estivesse disposto a saber.
Quando encarou a face de Merrick,
Wells descobriu de que espécie de fibra ele era feito. Ao final do diálogo,
Wells levou consigo aquele que viria a ser o seu tesouro mais estimado e a sua
maior motivação para seguir em frente. Tratava-se de um cesto feito pelo
próprio Merrick. Um cesto que poderia ser comum se o seu criador não fosse tão
incomum. Um cesto que inspirou Wells a olhar com uma perspectiva inteiramente
nova para as possibilidades e que o levou a escrever uma de suas mais admiradas
obras... A Máquina do Tempo.
Gilliam Murray não era dado à
leitura e possuía uma vida estável. Após a morte de seu pai, Gilliam se viu
diante de uma biblioteca que agora era sua, e que havia sido construída apenas
para preencher um espaço vazio e conferir um certo status à família e à
residência. Então, aos 20 anos de idade, Gilliam descobriu o que viria a ser um
de seus maiores prazeres, a leitura. Algumas pessoas não conseguem enxergar o
real poder e a real grandeza de um ato aparentemente não tão poderoso e não tão
grandioso assim. Mas uma simples reflexão a respeito do que implica a leitura
de um livro e a leitura de um modo geral, torna esse fato evidente como a
imensidão do mar. E Gilliam, o construtor de estufas, encontra A Máquina do
Tempo, escrita por um homem chamado H.G. Wells, de quem até então não ouvira
falar e motivado por uma onda de livros de ficção que profetizam futuros para
terra, por sua vez também inspirados em Wells, Gilliam decide juntar-se ao
grupo de escritores que vaticinam “possíveis” futuros para a humanidade. Após
escrever sua estória, onde os autômatos são a causa da destruição da
humanidade, Gilliam entrega a Wells, a quem admira muito, um exemplar de seu
livro não publicado para que o mesmo leia e apresente seu parecer a respeito da
obra. Com alguma dificuldade Wells conclui a leitura do livro e é visitado por
Gilliam, que deseja saber o que o autor tem a dizer de sua obra. Wells fica
indeciso quanto a falar a verdade, que aquele e um péssimo livro, com uma
péssima escrita e um enredo totalmente inverossímil e ver a reação de Gilliam,
ou amenizar a realidade com algumas meias-verdades, menos avassaladoras. Depois
de muito pensar, ele opta pela primeira opção. Gilliam, em um acesso por pouco
incontido, sai de lá não para publicar seu livro e se tornar um escritor, mas o
dono do maior empreendimento de todos, ele torna a viajem no tempo mais que
ficção, ele a traz para a realidade. E Wells se arrepende amargamente da
escolha que fez.
Há muitas vidas presentes nas
páginas escritas por palma, como a Claire, uma jovem aristocrata que se vê como
alguém que nasceu no século errado, que não vê sentido nos costumes e no modo
de ver as coisas que impera em sua sociedade e que é guiada pelos eventos à um
futuro que em parte se deve a seu caráter revolucionário em parte, por que um
dia um homem decidiu escrever sobre uma Máquina que faz o homem viajar no
tempo. Há também o Tom, um pobre miserável que precisa, as vezes, recorrer a
meios nada legais para conseguir manter-se em vida e com um teto sob sua
cabeça, um daqueles cuja vida decidira agraciar com uma vida em uma Londres
onde viver é tão fácil quanto tentar sobreviver depois de ser lançado em um rio
com mãos e pés amarrados, preso a uma pedra de quilos e quilos, que por sinal,
é uma das coisas que Tom tem de fazer, e tudo isso, ainda que ele não saiba,
graças a uma discussão sobre as qualidades de escrita daquele que um dia viria
a ser seu patrão, Gilliam Murray.
Palma cria um universo muito
semelhante ao nosso no quesito escolhas e consequências. A nossa existência é
uma sucessão de eventos, como um lago onde a todo instante gostas de chuva
estão a cair, formando círculos de ondas que se encontram com outros círculos e
com outros e ainda outros, sem sessar. Assim são nossas vidas, por meio de
nossas escolhas, palavras, ações, afetamos não apenas a nossa existência, mas a
de outros, mudamos sua história, seus pensamentos, suas atitudes, o rumo de
todas as coisas. Quantas vezes nos pegamos pensando em como seria nossa vida
se... e se não houvéssemos ido aquele encontro... e se não houvesse me mudado
de casa... e se eu jamais tivesse coragem para abandonar aquela ideia... e se
eu jamais houvesse tragado minha primeira droga... quantas lágrimas minha
família não teria derramado... quantos amigos eu não teria perdido... quantas
vidas não teriam sido... enfim, “o que me espera na direção que não escolho?”.
Por Henrique Magalhães
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