sábado, 8 de março de 2014

Análise: 1984, de George Oewell


É muito provável que você não saiba, mas você está sendo vítima de uma espécie de estupro mental desde o momento em que nasceu.

1984, lançado na metade do século passado, em 1949, se tornou um marco na ficção literária, foi adaptado aos cinemas e teve muitas de suas predições concretizadas no século em que vivemos. É um livro perturbador em muitos aspectos.

Se alguém lhe pedir que demonstre que a literatura de entretenimento (de modo geral, a ficção) é grandiosa, importante e essencial, como também útil e singular, apenas diga: 1984!

Quando nas mãos de um bom e dedicado escritor, uma ideia vai encontrar na ficção um solo fértil onde poderá crescer e dar multidões de frutos.


- Uma das mais famosas representações literárias de uma sociedade distópica;

- Uma das cem melhores obras de língua inglesa publicadas desde 1923;

- Banido e questionado em alguns países.

1984 (ou, em algumas edições: Mil Novecentos e Oitenta e Quatro)


Para muitos dos que viveram nas décadas de 50 à 70 e metade dos anos 80, essa data se tornou um prognóstico assustador e, em meio a tantas guerras e sistemas de governo tentando se estabelecer,.o teor assustador presente na obra invadiu a realidade de modo que muitos aguardaram a concretização dos eventos descritos da obra. Jamais poderemos partilhar da emoção desses leitores, que precederam a data profética do livro, no entanto, o livro continuar a impingir em seus leitores o terror que advém da descoberta de realidades ocultas que dizem respeito a cada um de nós, ainda que seu propósito não seja nem de longe, enquadrar-se no gênero do horror.

Algumas capas das diversas edições brasileiras (e estrangeiras):
*Clique na imagem para expandi-la



Sobre a Obra
*Como prezo por sinopses destituídas de spoilers relevantes, aqui vai uma síntese que encontrei na encicopédia livre.

1984 (Mil Novecentos e Oitenta e Quatro) é um romance distópico clássico do autor inglês Eric Arthur Blair, mais conhecido pelo pseudônimo de George Orwell. Terminado de escrever no ano de 1948 e publicado em 8 de junho de 1949, retrata o cotidiano de um regime político totalitário e repressivo no ano homônimo. No livro, Orwell mostra como uma sociedade oligárquica coletivista é capaz de reprimir qualquer um que se opuser a ela.

1984 e Sua Aplicação na Vida Real

+ Sobre Ler 1984 com 13 Anos

Quando tinha 13 anos (período em que já era fascinado com História e admirava razoavelmente a Geografia), me deparei com um livro sem capa, com a lombada repleta de furos e ferrugem e um sem número de marcações. Peguei o livro e levei para casa, mais interessado em ler as marcações do que outra coisa.

As marcações tinham algumas afirmações, como:

"Abaixo o Grande Irmão (xingamentos)... Abaixo o Grande Irmão!"

"Duplipensamento é o que muitas religiões estão fazendo, é o que a TV está fazendo, é o que as pessoas estão aprendendo"

"No quarto 101 eu encontraria meus pais prestes a serem mortos e sei qual seria minha inevitável reação"

Como vocês devem imaginar, eu não entendi nada de nenhuma das marcações que eu li, as referências me eram desconhecidas. Naquele mês em que li 1984, não consegui ler nenhum outro livro, apesar de ter concluído a história em 4 dias.

+ Agora, aos 21...

... o livro continua me deixando aterrorizado. As reflexões que ele proporciona e a crueza com a qual ele revela realidades "ocultas" e sintetiza informações que estão diretamente ligadas com a forma como levamos nossa vida, com o que acreditamos, a nossa ética, moral e humanidade, nossa ideia de liberdade e como a liberdade realmente é. O amor, a paz, a esperança de um mundo melhor... 1984 não traz nenhuma mensagem de esperança e, enquanto relia essas páginas, me peguei desejando encontrar um final diferente, ainda que ciente da impossibilidade de tal ocorrência. O final continuou o mesmo e igualmente chocante. O garoto de 13 anos atrás, agora crescido e com a mente mais alimentada, continua aterrorizado diante do caos prognosticado por Orwell, um dos mais influentes autores de toda uma geração.

Ler 1984 é um passaporte direto para uma visualização em cores e alta definição de uma realidade caótica, que em muitos aspectos, já acontece no nosso aqui, no nosso agora e em nosso depois.

+ Winston e Nós ... a Mídia e Nós

Não pretendo dar aula de história com essa resenha, se o fizesse ela assumiria proporções astronômicas. No entanto, eu recomendo que pesquisem a respeito das associações que podem ser feitas entre alguns dos personagens e eventos do livro com eventos e ícones da nossa História, como Stalin, Trótski, o nazismo, socialismo e muitos outros. 

A história narrada é a de Winston Smith, um homem com uma vida aparentemente insignificante, que recebe a tarefa de perpetuar a propaganda do regime através da falsificação de documentos públicos e da literatura a fim de que o governo sempre esteja correto no que faz. Smith fica cada vez mais desiludido com sua existência miserável e assim começa uma rebelião em atos e pensamentos contra o sistema.
Todos os que leem 1984 serão tentados a depositar em Winston confiança, tentados a acreditar que, ainda que com o sacrifício da própria vida, ele dará inicio ao fim do sistema totalitário e invasivo que impera sobre a sociedade. Bem, como estamos falando de uma distopia orwelliana, podemos fazer alguma ideia do que aguardar.

Winston é um retrato dos indivíduos (poucos) que desejam ardentemente acabar com toda espécie de servidão imposta aos governados pelo Estado. Ele percebe que há muitos erros (erros crassos e evidentes) sendo praticados explicitamente pelo governo e não suporta a ideia de não fazer nada, a ideia de que ele possa ser o único a se manifestar sobre tal fato. Wiston sabe, fazendo uso da lógica e do pouco conhecimento que possui, que as coisas estão erradas e é preciso lutar contra o tempo, e, pior, contra o governo, que tem o apoio de praticamente toda a população mentalmente dominada.

Não vivemos em um sistema totalitário, mas presenciamos práticas totalitárias vindas do sistema e dos próprios cidadãos com frequência assustadora. Uma das frases mais aterradoras presentes na obra de Orwell é esta:
"Se você quer uma imagem do futuro, imagine uma bota prensando um rosto humano para sempre"
Essa frase resume bem o caráter do governo totalitário, caráter esse que tem sido aderido e posto em prática pelo sistema vigente, que tenta manter essas ocorrências implícitas, mas que podem ser observadas nos quatro cantos da sociedade. Diferente de Winston, temos informações, temos acesso livre a essas informações e mesmo diante da censura, a internet nos fornece o que quer que queiramos saber e, ao obter esses conhecimentos, se ainda há humanidade em nós, seremos tomados por uma revolta e disseminaremos essa revolta e a despejaremos como ingrediente para a solução. Convém lembrar que a sociedade não é formada apenas pela classe dominante (o governo), mas também (em maioria esmagadora) pelos cidadãos. Logo, não se pode culpar o governo por tudo que dá errado, a realidade é feita pelos atos de cada um, pela nossa passividade ou atividade diante das situações.

Como Winston, precisamos nos incomodar com  injustiça, com o erro, com as falhas dos homens e do governo, com o sofrimento, com a bota imprensando um rosto humano. O incômodo deve ser tal qual pedra no sapato, deve ser removida para evitar danos maiores.

O final que Orwell encontrou para Winston é um demonstrativo do que acontece quando aprendemos a conviver com o pedregulho dentro do sapato.

Vivemos em uma era midiática, ou seja, muito do que ocorre, do que se pensa, do que acontece ou do que é dito é influenciado pela mídia.A mídia controla boa parte da informação e manipula a realidade tal qual o governo totalitário do livro em questão. Vivemos numa era em que os desenhos, filmes, novelas, programas de TV são definidores da cultura. A mídia não está preocupada em mostrar os fatos, mas de ganhar com aquilo que ela considerar relevante e se para isso é necessário criar um povo alienado, desinformado e intelectualmente nulo, ela o fará, tal como já o faz.

+ Júlia e Nós

Ainda que não tenha sido a intensão de Orwell, Júlia pode ser vista como um indivíduo que sabe que alguma coisa está errada, sabe que está sendo oprimido ou tendo seus direitos negados, mas não quer saber o que realmente está acontecendo, não está preocupado com os outros e pretende apenas fazer o que estiver ao seu alcance para o seu próprio benefício. Como misantropo confesso, compreendo a desmotivação de Júlia na luta pela libertação da Nação. Ponto razoavelmente positivo é que ela confia em alguém que ela sabe ter certeza do que quer: destruir a opressão. Mas na vida real as coisas não são bem assim. Se você está em desvantagem e depende de outra pessoa parar pensar por você, para entender por você, você continua sendo escravo, e por livre e espontânea vontade.

Como júlia ignorou praticamente por inteiro o livro de Goldstein, muitos ignoram a informação e o conhecimento e não compreendem pelo que e para que devem lutar. Quando observo a realidade ao meu redor, vejo vários equivalentes à Júlia, "dormindo" enquanto o conhecimento é ignorado e rejeitado.

+ O Grande Irmão Mora ao Seu Lado... ou na Sua Casa...

"O Grande Irmão está de olho em você"
A expressão "Big Brother" tem sua origem na obra de Orwell, e seu conceito está intimamente associado ao controle mental e a ausência da liberdade de pensamento e privacidade.

Hoje vivemos uma realidade muito semelhante a realidade invasiva vivenciada por Winston: Não há privacidade! Estão de olho em nós! O mundo inteiro nos vê.

O equivalente às teletelas do livro, que captam sons e imagens, são os satélites, câmeras espalhadas pelas cidades e estabelecimentos, celulares dentro e fora da nossa csa, câmeras em todos os lugares. Não sabemos quando estamos sendo filmado, quem pode estar nos observando agora. A mídia, a tecnologia e a internet de um modo particular parecem formar a tríade que visa derrubar o espaço íntimo. Ainda mantemos um espaço diminuto apenas nosso em nossos crânios, mas... até quando?

Um outro aspecto aterrador na obra são as crianças. Elas são a personificação do terror, da ausência de amor e do nascimento do ódio. Elas não pensam duas vezes antes de entregar seus pais às autoridades diante da mais simples manifestação de rebelião, ainda que inconsciente: como palavras ditas durante o sono. A influência que o governo, a mídia por meio de músicas, discursos e programas, além dos projetos sociais e do sistema de ensino, exercem uma influencia tão intensa e poderosa sobre as crianças que elas se tornam meros espelhos que refletem tão somente os ideais do governo.

Não é diferente nos dias que correm. Fico estarrecido com a quantidade de comentários pejorativos, vazios, brutais, perversos, desrespeitosos, depreciativos que postados por crianças e adolescentes na internet. Crianças e adolescentes que serão os adultos de amanhã. A quantidade de visualizações de um clipe musical (que em questão de horas pode atingir os extensos milhões) em comparação com os documentários, propagandas didática e vídeos de cunho intelectual... tenho medo da próxima geração e não me engano quanto ao futuro cinzento e emocionalmente pobre que aguarda a humanidade.

O Grande Irmão, o verdadeiro inimigo, pode estar dentro de nossas casas, em um sentido de perigo a longo prazo, ou frustração e desespero a longo prazo, diante da constatação de toda uma vida foi banalizada, jogada ao monturo. Com nosso sistema capitalista, o G.I. se manifestas de diversas maneiras, com um único propósito: nos desestruturar, alienar e dominar. A ignorância é um dos mais perpétuos Males dos Séculos, a ausência de interesse pela informação, pelo aprendizado, pelo pensamento crítico-comparativo é sustentada pelos excessos daquilo que não deveria estar recebendo tanta prioridade.

+ Sobre a Abrangência Temática da Obra

Extensa. 1984 é uma obra de temática extensa, abrange muitos aspectos da vida cotidiana, política, sistemas de governo, pensamento crítico, técnicas de manipulação consciente e inconsciente, passividade cidadã perante o caos, desestruturação da família e muitas alusões feitas a eventos, pessoas e aspectos da realidade histórica que envolveu os períodos de guerra no século passado, como o nazismo entre outros. Ainda que sua profecia não tenha se concretizado ao pé da letra, não devemos descartar os alertas com os quais ele nos aborda.

Há muito para ser dito e abordado, como o duplipensar, os métodos de tortura, o propósito do quarto 101, a atitude de alguns personagens, a Novafala, os Dois Minutos de Ódio, o Partido e suas subdivisões, as três potências: Eurásia, Lestásia e Oceania, os proletas, os Médios e os Altos.

Um livro que encontrou na ficção a melhor forma de retratar a realidade.

Uma história psicologicamente perturbadora, que nos introduz em um mundo, até então, "invisível".

Por Henrique Magalhães

4 comentários:

  1. Viva Henrique,

    Mais um excelente comentário, li esse livro faz tempo e embora ache um livro com muita qualidade não gostei muito, distópias não faz muito o meu genero, ainda assim a que mais gostei foi o Homem do Castelo do Dick.

    Abraço e boas leituras

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    1. Agradeço, Paulo!

      Confesso que é bem difícil eu não gostar de um livro (posso dizer que sou eclético quanto aos gêneros literários (só não leio chick-lit)). Tenho preferência por Literatura Fantástica e em seguida Ficção Científica (com todos os seus subgêneros!!) ^_^

      Também preciso encontrar um tempo para invadir seu blog repleto de resenhas (o que seria de nós sem o compartilhamento em rede *_* ??)

      Abraços!!

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  2. Caramba, muito bom. Uma análise fácil de ler e que me deixou com ainda mais medo do livro! rsrsrs Obrigada!

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  3. Análise extremamente didática! Ainda to meio traumatizada com o final do livro... Parabéns!

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