terça-feira, 13 de maio de 2014

Análise: Red Ridding – 1974 (Livro I), de David Peace [SEM SPOILERS]


1974 Red Ridding  é um retrato hediondo e hiper-realista do que há de pior na humanidade. É um choque de realidade tão potente e devastador, que me leva a deixar a seguinte nota: Leia apenas se estiver preparado(a) para percorrer uma das vertentes do lado mais perverso, ambicioso e depravado dos seres humanos. Bem escrito, original, complexo, personagens bem estruturados, marcante, frenético, aterrador, tenso de um modo crescente. É um livro que não vai deixar você sair da mesma forma que estava quando entrou. Está entre os melhores livros que li esse ano.

*Sinopse ao fim do post.

Análise

Bem Escrito: Parte da narrativa é feita em tempo real (gerúndio), acompanhamos os personagens no momento em que suas ações ou pensamentos estão ocorrendo. Outra parte ocorre no pretérito perfeito. David Peace brinca com as palavras sem fazer uso de vocabulário rebuscado. Neste livro, sua escrita fluida é bastante influenciada pela personalidade do protagonista, afinal, estamos lendo as perspectivas de Dunfford, um repórter adulto, com seus próprios problemas pessoais e a ambição de ser reconhecido nacionalmente e que se embrenha em um caso que se mostra ser muito mais abrangente e abjeto do que aparenta. O que começa com o desaparecimento de uma garota de 10 anos se transforma num inferno cada vez mais quente, cada vez mais aterrador.

Original: Sem diálogos artificiais, com uma trama nada previsível e personagens com personalidades convincentes, temos a cada vez mais rara originalidade. Em um mundo literário cada vez repleto de “mais do mesmo” e de clichês mal trabalhados, esta obra vem a como luz na escuridão.

Complexo e Inteligente: Mesmo sendo fluido em sua escrita, o autor construiu seu enredo envolto em complexidade, daí a importância de agir como leitor atento. Diálogos e comportamentos e, especialmente, os nomes dos personagens envolvidos precisam de atenção, do contrário, os fatores surpresa não proporcionarão a experiência emocional esperada. Mesmo a construção de diálogos e pensamentos envolvem certa complexidade, levando o leitor a usar mais a concentração. Um prato cheio para aguçar a mente. Como pude notar em minhas buscas por opiniões dos que leram o livro, algumas pessoas encararam essa complexidade como um aspecto negativo. Acredito no seguinte: um autor pode trabalhar em cima do enredo de modo simplista e fazer algo bom ou ruim, e o inverso se aplica da mesma maneira. Mas, definir que a complexidade da obra é negativa por ser complexa é, para ser educado, um desatino.

Personagens: Um dos pontos fortes da obra, os personagens são terrivelmente realistas e vergonhosamente humanos. Para mim, foi como beber um copo de realidade, perturbadoramente quente. 

Marcante: A história em torno da qual gira a trama é o desaparecimento de algumas crianças do sexo feminino e a brutalidade e frieza que permeia esses sequestros. Acredito ser impossível, sendo humano e possuindo sentimentos, não encarar essa realidade retratada no livro com terror, indignação, desespero e uma certa desesperança. Pela caráter realista da obra, o leitor fica consciente de que não se trata de ficção, mais uma demonstração ínfima da crueldade que o humano aplica ao humano. Um trecho traduz bem esse estarrecimento: “Adeus, Fitzwillian, onde a noite chega mais cedo e nada parece certo, onde as crianças matam gatos e os homens matam crianças”.

Frenético: De um lado, as reflexões e ações do protagonista, em tom crescente de tensão. Do outro, os eventos e a trama assumindo proporções cada vez mais inesperadas. O resultado é um frenesi acariciando o psicológico.

Tensão crescente e Poucas Descrições: Para quem não gosta de muitas descrições, este é um prato de que devem se servir. Peace não recorre muito à descrições e, quando o faz, faz brevemente. Em parte, é esse aspecto que atribui um estado de constante tensão. As revelações e eventos assumindo proporções delirantes, colocam os personagens em um estado de tensão muito semelhante à catástrofe iminente. Lidar com essas tensão e, ao mesmo tempo, encarar a realidade retratada, cada vez mais obscura e nauseante, coloca o leitor no meio de uma troca de tiros.

Reflexão: Concluída a leitura, o leitor será tentado a acreditar que o inferno é exatamente aqui, onde vivemos e que os humanos são os demônios. Trata-se de uma leitura reveladora, você não sai no estado em que você entrou.

Encarar policiais agredindo uma mãe de família em idade avançado e de luto pela recente morte do esposo após invadirem sua casa em busca de seu filho; Acompanhar esses “homens da lei” torturar pessoas para obriga-las a conversar crimes que ela nem sequer sabe que foram cometidos; Acompanhar redatores transformando um crime brutal e oportunidade para o tão almejado reconhecimento, ainda que isso signifique burlar, enganar e falsificar; Lidar com retratos vívidos da nossa realidade, enxergando um pouco mais além, para a podridão que está por trás das grandes e pequenas organizações, dentre tantos outros “socos” que o livro nos lança. Um mundo sem heróis, feito de homens dispostos a passar por cima de qualquer pessoas para a concretização de seus interesses. Pessoas comuns vivendo suas vidas comuns, indo atrás de “reconhecimento” de “crescimento profissional”, expressões que, na maioria dos casos, se converte em dinheiro, dinheiro e dinheiro, que atrai os homens como uma lâmpada atrai insetos. Que mata, como o fototropismo mata os insetos.

Pontos Negativos: Se existem, são tão irrelevantes que ficaram afogados em profundas águas.

SINOPSE
Dezembro de 1974, poucos dias antes do Natal... Edward Dunford, aspirante a celebridade jornalística, é escalado para cobrir um caso tenebroso: o estrangulamento e estupro de uma menina de dez anos. Em casa, suas tias relembram casos semelhantes ao da menina, o que dá a Edward a ideia de fazer uma grande investigação. No entanto, o projeto acaba se transformando numa viagem ao inferno. Além de ser substituído por um repórter veterano, Edward se envolve numa trama que vai além do assassinato em série de garotinhas. De repente, toda a cidade de Leeds, no norte da Inglaterra, parece estar envolvida no crime. Após testemunhar o incêndio em um assentamento cigano e a morte de um colega de trabalho, nem mesmo Edward se livra das suspeitas, pois se envolve com a mãe de uma das meninas assassinadas e numa guerra imobiliária entre forças econômicas locais. À beira do abismo e relegado a segundo plano no jornal, Edward persiste com sua apuração. Entre altas e perigosas doses de uísque, o comportamento ambíguo do repórter o transforma no suspeito de um crime terrível. 1974, um romance vertiginoso e com diálogos cortantes, é o primeiro de quatro livros que dissecam o empobrecido Norte da Inglaterra anterior à era Thatcher.

Por Henrique Magalhães

2 comentários:

  1. Ois,

    Bem registado vou tentar saber se está publicado deste lado do Atlântico, começo a ficar preocupado em ler os comentarios deste blog, pois fico sempre com imensa vontade de ler os livros :D

    Abraço e mais um excelente comentário ;)

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