quarta-feira, 5 de novembro de 2014

Resenha: O Zen e a Arte da Escrita, de Ray Bradbury




Livros que falam sobre os livros, sobre a leitura ou sobre a escrita são sempre como energéticos para mim. Eles potencializam e fundamentam o senso que tenho em relação a importância dos livros e da leitura nos diversos aspectos da minha vida e na sociedade humana como um todo. Sempre que leio tais livros, me ergo ao final da leitura como um leitor que bebeu da fonte da juventude com a certeza de que pode muito bem ler ainda outros milhares.

HUMANIDADE COMPARTILHADA

Há tanto que já foi dito sobre os livros e ainda há muito mais a ser dito, desvendado, descoberto, explanado, analisado, estudado, comparado, concluído, catalogado, reformulado, ensaiado, romanceado... Livros são tão individuais e únicos como o é cada ser humano, um mesmo organismo repleto de particularidades. Nenhum é igual ao outro, todos detentores de impressões digitais distintas. Carregar consigo um livro é como carregar parte de outro ser humano, uma parte compartilhada para ser compartilhada. Olhamos pelos olhos de outros, passeamos por sua mente, visitamos outros pontos de vistas, outras sensações, outras alegrias, outras dores, outros mundos. Quando lemos um livro, praticamos uma das modalidades da arte de ouvir, a arte de parar para escutar, para aprender, para entender, para conhecer. Quando escrevemos, deixamos correr pelo sangue, através de veias e artérias, até alcançar nossos dedos, aquilo que está oculto aos outros e, muitas vezes, oculto à nós mesmos.

Não posso evitar a sensação de imensa perda quando me recordo da Biblioteca de Alexandria e de seus livros eternamente perdidos. Quanta humanidade não compartilhada, quantos pensamentos esquecidos, quantas ideias jamais acessadas. O mundo é menor por ter perdido o que compunha o que poderia ser hoje o maior acervo cultural de toda a História do homem. A primeira maravilha do mundo.

“É preciso se embriagar da escrita para que a realidade não o destrua. Escrever oferece exatamente as receitas adequadas de verdade, vida, realidade que você é capaz de comer, beber e digerir sem sofrer de hiperventilação ou agonizar como um peixe fora da água em sua cama.”

A ARTE DE PARAR ou VOCÊ É O QUE VOCÊ COME

Numa sociedade barulhenta e em constante movimento como a nossa, 'parar' se tornou uma atitude obsoleta e, portanto, distintiva. O processo envolve não apenas cessar de andar ou de se mover (esses, na verdade, são os aspectos menos relevantes do processo), mas sair completamente da impulsão imposta pelo capitalismo, pelo pensamento consumista, pela mídia ou pelo avanço tecnológico. Essa impulsão impede as pessoas de entrarem em suas próprias mentes, terem suas próprias reflexões, de olharem ao redor com seus próprios olhos, pois mesmo quando estão visivelmente estancadas em seus lugares, continuam sendo empurradas em um círculo vicioso em que suas mentes estão em brusco, constante e selvagem movimento nessa perigosa montanha russa que chamamos de "estar conectado". Uma conexão de qualidade duvidosa, que transforma sua mente em um produto para consumir cada vez mais bits de informação não complexa, um produto que está sendo comprado e do qual você está sendo desapropriado. Sua mente é reflexo do que você faz com o seu tempo, tempo esse que também está sendo comprado e retirado de você.

SOBRE LAGARTOS E ESCRITORES
Corra, pare. Eis a lição dos lagartos. Observe a maioria das criaturas e você verá o mesmo. Corra, pule, congele. Com a habilidade de se mover como um cílio, estalar como um chicote, desaparecer como um vapor. E quando a vida não está correndo para escapar, está fingindo de estátua para fazer o mesmo - Ray Bradbury
No livro o autor faz uma analogia entre o comportamento de lagartos e escritores, defendendo a ideia de que se o escritor for rápido enquanto escreve conseguirá alcançar a honestidade, pois na hesitação há o pensamento, na demora, surge o esforço por um estilo, em vez do mergulho na verdade. Para Bradbury, escrever sem pensar é um mecanismo que o escritor pode utilizar a seu favor na busca da originalidade, despejando o que está em seu subconsciente, vomitando o excesso de coisas ocultas no ambiente secreto da mente. Feito isso, pare. Como um lagarto, pare, mimetize o conteúdo, mescle-se com ele, faça parte dele. Seja a consciência daquilo que, até então, não tinha consciência alguma.

Uma técnica usada pelo autor consiste em escrever listas de palavras aleatórias, relacionadas a alguma lembrança, especialmente da infância e juventude. Essas palavras devem ser escritas sem base no pensamento, se veio à mente, escreva. Feito isso, o passo seguinte é associar essas palavras aos eventos e experiências vivenciados e daí encontrar uma base para histórias originais.

Bradbury fundamenta seus conselhos sobre escrita em suas próprias experiências, revelando ao leitor os erros que os levou a tornar-se um prolífero e reconhecido escritor. Essas experiências envolvem grande parte das lembranças que ele tem do tempo em que era criança, das alegrias e tristezas que vivenciou nessa saudosa época, os amigos, as aventuras, os encontros. Todas essas lembranças serviram como pano de fundo para suas estórias. Utilizando uma técnica desenvolvida por ele mesmo quando ainda criança, Bradbury fazia listas com palavras que representavam objetos, lugares ou seres (insetos, pessoas etc.) e fazia associações entre esses objetos e suas experiências da infância ou da vida adulta. Dessas associações surgiram seus contos, poemas, peças e romances.

A ARTE DA ESCRITA

Ray Bradbury é um entusiasta dos livros, da leitura e da escrita. A paixão que ele externa nessa curta coletânea de ensaios é evidente da primeira à última página e surtiu em mim um efeito muito próximo à euforia mas que decifrei como sendo uma transmissão ininterrupta de energia do livro para mim. As páginas estão tinindo dessa energia concentrada  que vai capturar o leitor - mesmo o mais desatento - e lançá-lo no olho do furacão que é o amor de Bradbury pela escrita e pelos livros.
"Devemos pegar nossas armas a cada dia e todos os dias talvez sabendo que, se a batalha não pode ser completamente ganha, devemos lutar, ainda que desferindo golpes leves. O menor esforço para ganhar significa, ao final de cada dia, uma espécie de vitória. Se você não escrever [ler] diariamente, o mundo o engolirá e os venenos se acumularão e você começará a morrer, ou a enlouquecer."
Entusiasmo e prazer são as palavras com as quais o autor resolveu iniciar o primeiro capítulo do livro e são, do seu ponto de vista, aquelas que definem o que é imprescindível a qualquer escritor. Para Bradbury, sem esses fatores o autor não está completo, é um meio autor. Um dos fatores que impedem muitos escritores de colocarem nas prateleiras sua originalidade é o mercado. A tentação em escrever o que está sendo vendido ou fazendo sucesso no mercado é a razão pela qual há muito lixo impresso, cópias de cópias, clichês mal trabalhados, romances sem nenhuma originalidade, sem nenhuma humanidade.

Eu diria que o livro é mais sobre a importância de escrever com originalidade e paixão do que sobre técnicas de escritas. A impressão que tive era a de estar a ler um livro de auto-ajuda para leitores-escritores. Sem dúvida o aspecto mais evidente e marcante do livros é algo que fica latejando a cada capítulo, uma paixão evidente, um amor incontido, um louvor, uma prece, todos com o propósito único de engrandecer a experiência da escrita e da leitura.

Recomendo esse livro a todo leitor apaixonado e a todo leitor que  deseja se apaixonar e a todos os escritores que precisam de uma dose alta de ânimo.

Por Henrique Magalhães

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