segunda-feira, 23 de dezembro de 2013

Análise: O Pistoleiro, de Stephen King



"O homem de preto fugia pelo deserto e o pistoleiro ia atrás."

Para alguns, ler O Pistoleiro é uma tarefa árdua, mas é uma leitura que vale cada gota de suor.

O Pistoleiro é uma leitura complexa e perturbadora.

Eu confesso que me sinto orgulhoso por ter lido um livro de personagens tão enigmáticos, com pensamentos, ações e reações que são um convite para a reflexão não apenas do comportamento humano, mas da forma como cada ser humano encara os fatos da vida.

Acompanhamos Roland em sua perseguição mortal ao homem de preto, que pode ser tanto um homem comum, como algo não tão comum quanto um simples homem. Roland está realmente disposto à correr todos os riscos para chegar ao homem de preto, e mais que isso, ás respostas que ele possui para suas perguntas.

Acredito que do mesmo modo que Roland precisa de respostas para perguntas que ele não consegue responder, respostas das quais necessita desesperadamente, nós também precisamos, e também as buscamos.

Por algum motivo Roland sentia que suas respostas estavam com aquele homem. Apesar de ser um homem bastante pragmático e com uma inteligência não muito capaz de compreender os fatos de um modo profundo, ele sabia que precisava de respostas que não apenas fossem respostas, mas as respostas, as únicas respostas. Algumas pessoas estão em busca do mesmo, de explicações para fatos, eventos, momentos, fenômenos, a vida ou parte dela, mas em algum lugar dentro de suas mentes sentem receio das "únicas" respostas e acabam aceitando apenas aquelas mais fáceis de encontrar, que podem ser dadas por qualquer um capaz de construir um argumento convincente, mas oco, vazio, que apenas aparenta preencher o espaço que pode permanecer eternamente deserto.

Roland entende de desertos. Para alcançar o homem de preto ele precisou atravessar o maior deserto, o mais infernal, um deserto de solo duro e rachado pelo calor incensante onde o pó levantado pelo vento mais parecia estilhaços de aço e a única vida que ali crescia era a "erva-do-diabo", um equivalente a heroína ou cocaína em nosso mundo. A erva do diabo poderia ser utilizada pelo caminhante do deserto á noite para acender uma fogueira que amenizasse o frio que acompanhava o cair do sol, porém jamais se deveria olhar diretamente ás chamas, os que assim fizessem seriam por elas tragados, como Eva o foi pela árvore proibida, ou Narciso, por sua beleza. Para o caminhante do deserto, a erva era sempre uma alternativa ao calor escaldante e delirante do deserto, uma promessa de êxtase e "iluminação", um passo certo para o vício e dependência que por sua vez, conduzia à ruína e morte. A erva, como droga, poderia ser utilizada também por quem está em busca de respostas na esperança do "abrir os olhos", um caminho sem volta para o fim. Esse é o tipo de respostas que alguns estão dispostos á aceitar, tonar verdades irrefutáveis quando não passam de argumentos elaborados por uma mente egoísta, interesseira ou apenas maldosa.

A muito custo, Roland chega a uma espécie de intervalo em seu mundo imutável. Ele então conhece Brown, um colono que habita á orla do deserto, e Zoltan, seu corvo. Lá Roland encontra água para encher seus cantis, comida, para o estômago e ouvidos dispostos a escutar sua história a respeito de como ele destruiu todo o povoado de Tull.




Antes dele, o homem de preto já havia passado por Tull, como ele logo viria a descobrir. Em Tull, somos apresentados aos habitantes daquele povoado, cada qual bastante singular a seu próprio modo.Aqui fica evidente a qualidade dos personagens oriundos da mente de King, ainda que estes sejam apenas um pano de fundo passageiro para um cenário maior, o pouco tempo em que caminham na estória é o bastante para nos fazer sentir por eles.

Tull se revela um covil de mistérios, o primeiro se manifesta em um ressurreto, ou "Tocado por Deus", que em vida se tornou dependente da erva do Diabo e que por isso morrera, até que o homem de preto o reanima, mas ele já é apenas um vulto do que fora, um viciado que tenta sofridamente resistir á tentação da erva, do contrário conhecerá a morte novamente.

Tull se mostra ser também um perigoso lar de cristãos fanáticos que veem o Pistoleiro como intruso, um mensageiro do mal, o próprio mal, e são motivados e influenciados a pensar desse modo por uma pregadora da palavra, que parece conhecer a fundo as histórias bíblicas e ser guiada pelo próprio Deus. Do mesmo modo que ocorre na atualidade, as mensagens dassa mulher mexem com o emocional de seus ouvintes levando-os á histeria, choros e comoções, despertando neles uma sensação de culpa e remorso, fazendo-os clamar por perdão, por livramento e por salvação. Neste ponto, já estão dispostos a agirem de acordo com a palavra de Deus e expulsarem o mal de sua terra. O pistoleiro não acredita em Deus, em demônios sim, Deus não, e Tuul cai sobre ele.

Durante o tempo que passou em Tull, o pistoleiro criou laços com uma mulher, uma mulher que também queria respostas. Uma mulher que queria respostas que não deveria desejar. Que não resistiu a perguntar e que enlouqueceu quando as repostas se desmancharam em seus ouvidos e como ouriço fixou-se em sua mente. Respostas que a mataram. Respostas vindas de quem já estava morto.

Há mortos ao nosso redor. Há mortos que falam, que ouvem e veem. Há mortos que sabem de coisas que não cabem aos vivos e em especial aos vivos que querem continuar vivendo. Respostas que matam, respostas que tornam vivos em mortos.

Até onde estamos dispostos a ir para encontrar as respostas para as perguntas de nossas vidas, as que realmente valem a pena? O pistoleiro encontrou "mortos" em seu caminho, como eu e você certamente encontraremos, pessoas que já não davam o devido valor ao ar que respiravam, perdidas em ressentimentos, tragadas pelo ódio, ou pelo ciúme e toda sorte de sentimento degenerativo sustentado por uma base podre.

O fanatismo religioso é abordado no trecho de Tull de um modo evidentemente crítico. A cidade de Tull de repente se vê inundada por uma turba alimentada de um ódio palpável por Roland, que foi descrito pela pregadora como o mensageiro do mal, se deixaram levar pela teologia da mensageira, por suas palavras de poder, ditas com eloquência e autoridade e, aos olhos daqueles pobres aldeões, ditas com uma inteligência inquestionável e insuperável que só poderia vir do próprio Deus. Para mim, esse é um retrato triste de uma realidade igualmente triste, cujas consequências são destrutivas. Não pude deixar de imaginar o povo de Tull como marionetes guiadas pelo fio do fanatismo religioso, pelo medo da condenação e pela esperança da redenção, que veem as pessoas ao redor do mundo como peixes que devem ser pescados e lançados á rede de Deus. Peixes que falam a língua dos peixes, cuja sabedoria não passa de vento, cujos olhos estão encobertos por escamas que os impedem de ver nitidamente. Peixes que ainda não tiveram uma experiência "em espírito e em verdade" com Deus.

Roland segue adiante, do mesmo modo que o mundo também seguiu.

Roland é um homem que perdeu tudo, pior que isso, um homem que perdeu todos. Família, amigos, companheiros, mestre, vizinhos, seu lar... todos se foram, tragados pela morte, alguns dos quais ele próprio matara. Roland é o último pistoleiro, cujo papel é manter o romantismo no mundo e a alegria de viver, de trazer a luz de volta. Roland está disposto a viver para deixar viverem.

Hoje vivemos em um mundo que precisa muito de pistoleiros, mas de pistoleiros que sejam em essência pistoleiros, defensores do direito à vida, erradicadores de toda centelha de escuridão, capazes de agir ainda que contra si mesmos. Um mundo onde a vida assume todos os dias um caráter de futilidade, onde já não existem dignos momentos memoráveis, onde as conversações já não agregam valores e os valores estão sendo perigosamente invertidos.

De volta ao deserto, Roland segue no encalço do homem de preto e encontra o garoto Jake. Desde o início suspeita que Jake é apenas mais uma armadilha engendrada pelo homem de preto, a convivência e as experiências por que passam, no entanto, guarda para Jake um lugar grandemente especial no coração do pistoleiro.

Roland e Jake seguem em perseguição ao homem de preto e vivenciam, juntos, situações que fortalecem a reação que surge entre ambos, Roland descobre que então que caiu na armadilha daquele a quem persegue, o amor. O amor que sente por Jake põe em perigo seu sucesso na busca pelas respostas que o levarão ao seu objetivo maior, a Torre, sobre a qual Roland nada sabe, exceto de sua possível existência e importância.

Assim como Roland nós buscamos respostas para chegarmos a algum objetivo, respostas que nos sirvam como guias, nós as buscamos em todo tipo de lugar, em músicas, livros, conversas, estudos, em idas e em vindas, no ato de ouvir e calar-se e por vezes do ato da fala, nas experiências do passado (que são relíquias que devem ser bastante remexidas), nas vozes dos que jazem na sepultura... buscamos resposta para encontrarmos um sentido. Como Roland desconhece a Torre, nós desconhecemos os mistérios da vida, a própria razão de ser, o início de tudo, mas também como Roland entende que há importância na Torre, também sabemos que há importância na vida, que há significado nela e que podemos encontrar esses significados por meio de uma grande busca, uma busca que todos nós devemos empreender. Buscamos respostas que nos deem vida, que façam nossa existência se encher de sentido e de momentos memoráveis. Como Roland, precisamos atravessar desertos e sacrificar muitas coisas para chegar ao objetivo. A vida requer sacrifícios, e precisamos estar prontos para fazê-los. Nem sempre faremos a escolha certa, mas podemos sempre evitar o maior erro de todos: o remorso, que impede de seguir adiante e nos paralisa.

Roland e Jake se deparam com os Vagos Mutantes, seres humanos que sofreram mutações bizarras na anatomia de seus corpos após ficarem presos sob uma montanha. Depois de muito tempo presos na escuridão, Jake e Roland vivenciam a nostalgia causada pela lembrança da luz exterior, e almejam estarem mais uma vez sob o sol. Essa sensação de que tudo o que se viveu e conheceu não passara de um sonho é muito recorrente na fantasia e, como não poderia deixar de ser, é um fenômeno bastante significativo. Quando permanecemos muito tempo na escuridão, longe do sol, das vozes, dos passos, onde o som é uma ameaça de morte e perigo constante, a sensação de que tudo o que se viveu debaixo do sol, os sorrisos, os amigos, tudo começa a esmaecer e ficar embaçado, a soar um tanto impossível e a escuridão infiltra-se na mente e toma conta de nossa imaginação, nos faz pensar que ela é a única realidade e se torna nossa única crença. O perfeito retrato da depressão da decadência e dos vícios, do desespero e do trauma. Da mesma forma que a dor nos impede de lembrar de como é estar bem, a escuridão, o vício, e toda sorte de hábitos nocivos, nos faz ver a vida, a verdadeira vida, a que realmente deve ser vivida, como uma coisa de cinema, um evento dos livros ou pura imaginação, e então, nos estagnamos e nos deixamos ser levados pela mutação causada pelo ócio, pela trivialidade, pela repetição insignificante da rotina. Mas, para Roland e Jake, a vida precisava ser vivida e ambos estavam empenhados em abandonar aquela escuridão e lutaram a todo custo para conseguir, do mesmo modo que devem lutar aqueles que já não vivem a vida debaixo do sol, mas uma vida sem cor, em preto e branco, destituída de significado. Para aqueles que acham que não podem mais lutar ou escapar, Roland e Jake é um lembrete de que não, isso não é verdade!

Ao fim de sua jornada em perseguição ao homem de preto e suas respostas, o pistoleiro se vê vivenciando uma macabra cena bíblica:há muito tempo Roland não tinha alguém a quem amar, e Jake chegara para ser esse alguém e ele o amou tal qual um pai que há muito não tinha um filho, tal qual o folclórico Abraão amou Isaac, e Roland precisa escolher entre deixar viver Jake e perder suas respostas, ou deixá-lo morrer e lograr alcançá-las. Seu desejo de alcançar a Torre prevalece e ele escolhe a própria danação.Ele sacrifica. Em posto de parada ele encontrou Jake e de lá seguiu com ele e ele amou Jake e esse amor nos leva a considerar a nossa jornada pela vida e aquilo que encontramos nos nossos postos de paradas e passamos a amar. Não posso dizer que o pistoleiro fez uma escolha acertada, mas muitas pessoas tem feito escolhas erradas.Nos postos de paradas encontramos amigos, descanso, água para beber, comida e energia para continuar a jornada, mas, as vezes encontramos nossos demônios ou somos encontrados por eles. Há sempre o risco de sermos tentados a permanecer no posto de parada e acreditar que nossa jornada acaba ali e terminamos nossas vidas ao lado do demônio da rotina, da mesmice... é como possuir uma biblioteca repleta de todos os gêneros de livros e dedicar toda a vida para ler apenas um. As pessoas já não estão em busca de nada, elas julgam já haverem encontrado o que buscavam em redes sociais, TV, jogos, em cultos de igreja, em uma noção fixa de como as coisas realmente são, nas bebidas, no dinheiro... na rotina. Há um ditado que diz: Cuidado com o que você busca, você pode acabar encontrando, e outro que diz que deve-se ter cuidado para que não nos tornemos aquilo que perseguimos. O conhecimento já não é desejado e a compreensão é uma coisa cansativa demais, a dúvida é vista como maldição e a leitura de livros se tornou tão rara quanto uma boa conversa... o mundo está ficando escuro, as pessoas estão ficando escuras.

Quando paro para pensar que O Pistoleiro é apenas o início de uma série com 8 livros, um outro aspecto da vida se torna evidente: nunca teremos todas as respostas. Acompanharei Roland durante toda a sua jornada, descrita em todos os 8 tomos, alguns dos quais com mais de mil páginas (na edição de bolso), e posso notar quantas aventuras o Stephen poderia continuar escrevendo sobre a busca de Roland pela Torre Negra, e quantas aventuras as pessoas poderiam ter vivido antes de enterrarem-se a sim mesmas na sepultura da trivialidade constante.

Por Henrique Magalhães

2 comentários:

  1. Oi Henrique :)

    Parabéns pela resenha ficou espetacular. Vontade é o que não me falta para ler essa série, o problema é que eu ficava com medo do nível dela cair a medida que os livros forem avançando mas o seu pensamento sobre isso no último parágrafo, me convenceu ao contrário. Abraços!

    http://euvivolendo.blogspot.com.br/

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    1. Gabriel, obrigado por ter lido. Minhas resenhas acabam quase sempre se tornando mega-textos e se você leu eu tenho mesmo é que agradecer. Espero que goste do universo criado pelo King tanto quanto eu e muitos a fora gostam.

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