sábado, 18 de janeiro de 2014

Análise: Na Praia [de Ian McEwan]



É o tipo de história que nos deixa tão assustados quanto um livro de terror, mesmo sem possuir nenhum elemento de tal gênero, apenas por nos revelar verdades que não havíamos encarado frente a frente.

Sobre a Obra

Inglaterra, 1962. As profundas mudanças na moral e no comportamento sexual que abalariam o mundo ao longo daquela década ainda estão em estado de gestação. Edward Mayhew e Florence Ponting, ambos virgens, se instalam num hotel na praia de Chesil, perto do Canal da Mancha, para celebrar sua noite de núpcias. Ele é um rapaz recém-formado em história, de origem provinciana; sua mãe tem problemas mentais, e o pai é professor secundário. A noiva é uma violinista promissora, líder de seu próprio quarteto de cordas, filha de um industrial e de uma professora universitária de Oxford.
O desajeitado encontro íntimo desses dois jovens ainda marcados pelos resquícios da repressiva moral vitoriana é repleto de lances cômicos e comoventes, configurando uma autêntica tragicomédia de erros. Na praia, entretanto, vai além disso. Por conta da refinada arte narrativa de Ian McEwan, o drama dos recém-casados transcende o registro particular e o retrato de época para alcançar a dimensão de uma obra universal sobre o momento da perda da inocência, essa expulsão do paraíso que é um ponto de inflexão na vida de todo indivíduo.
Com sua prosa precisa, tão sutil quanto implacável, McEwan alterna os pontos de vista de Edward e Florence, radiografando seus pensamentos e motivações mais secretos. O sentimento trágico que fica no leitor vem da percepção dos estragos profundos e duradouros que um pequeno gesto, um único mal-entendido, uma palavra infeliz podem causar na vida dos personagens.
Com esse romance compacto, intenso, inteiriço como um poema ou uma peça musical, o autor confirma seu notável talento para captar e expressar os descaminhos da vida interior.

Na Praia e Sua Aplicação na Vida Real

+ Sobre ler ficção

Conforme seguimos lendo livros de ficção, muitos aspectos da vida se tornam transparentes, mais acessíveis à nossa percepção, de modo que muito do que antes não compreendíamos a respeito do comportamento humano e dos fenômenos sociais, tornam-se assuntos esclarecidos para nós. A leitura tem essa grandiosa capacidade de nos transformar em peritos em notar coisas que não são tão notáveis, como as causas de um determinado fenômeno social, político, familiar e, o mais incrível, prever o que as pessoas podem estar pensando, apenas por observá-las, a capacidade de compreender os motivos pelos quais elas se comportam de determinadas maneiras. Entender o comportamento das pessoas envolve interpretar seus impulsos, suas ações, enxergar o que não está visível e ouvir o que não foi dito. Nesse sentido, ler ficção é como adquirir capacidades especiais que podem ser utilizadas para proveito próprio e coletivo. A obra de Ian McEwan é um prato cheio para alimentar essa percepção. Quem aprende a ler ficção, lê também as pessoas e o mundo ao seu redor.

+ Uma prisão chamada Convenções

McEwan, por meio do seu casal em Na Praia, nos faz compreender quão frágeis são os rumos que a vida pode tomar e com que facilidade podemos ser tão ignorantes quanto às consequências que nossas palavras e ações podem exercer sobre o modo como as coisas serão no futuro e o poder que as mesmas exercem sobre nossas vidas e as dos que nos cercam. No livro, o autor mostra-nos como um relacionamento pode passar do status feliz para trágico em apenas algumas horas de gestos e palavras.

Nós utilizamos as linguagens, como os gestos corporais, expressões faciais e palavras, para comunicar o que queremos, pensamos, sentimos, o que não gostamos, o que planejamos e uma série de informações que nos definem e nos inserem na sociedade dos homens civilizados. Com o tempo, as pessoas estabeleceram convenções, padrões pelos quais pretenderiam julgar o moram e o imoral, o correto e o incorreto, o admissível e o inadmissível, e os tornou, em muitos casos, quase universais ou imperativos em determinados meios. Essas convenções, nem sempre, são benéficas, justamente por não serem universais como prometem ser, já que somos pessoas com vontades, desejos e sonhos distintos uns dos outros.

Por vivermos em um mundo onde o sexo é um tema amplamente abordado em casa, na escola, filmes, livros, entre outros, dificilmente encararíamos as situações vivenciadas pelo casal da estória. No entanto, ainda vivemos em uma sociedade repleta de convenções, de padrões pré estabelecidos que visam servir de base para o modo como as pessoas devem se comportar, no que devem acreditar, o que e como devem agir, pensar, falar. Essas convenções exercem tamanha influência que, do mesmo modo que o casal do McEwan, também precisamos de um esforço psicológico e físico imenso para revelar nossa perspectiva, quando esta não se encontra em conformidade com a visão comum.

O medo de ser alvo de falatórios, humilhações e desprezo por parte daqueles que estão sob o jugo das convenções, torna a vida de muitos dos que querem se ver livres dessas correntes, dessa prisão chamada Convenções, difícil, o que traz problemas envolvendo depressão, clausura, suicídios, assassinatos, bullying, uma série de consequências que tornam a sociedade assassina e que a mancha com o sofrimento e o sangue dessas pessoas.

Do mesmo modo como as convenções arruinaram a vida e o futuro promissor do casal em Na Praia, as pessoas o fazem quando elevam suas vozes para difamar alguém que decidiu abandonar padrões pré-estabelecidos, pessoas que decidem nadar contra a corrente  do comum, do socialmente aceitável, seja por seu estilo, crença ou descrença, seu modo de pensar. Se alguém teve coragem para fugir dessa prisão, dado o conhecimento a respeito da natureza humana, é de se esperar que aqueles que ainda estão aprisionados se incomodem.

Por Henrique Magalhães

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