quarta-feira, 15 de janeiro de 2014

Análise: O Oceano no Fim do Caminho [de Neil Gaiman]


Uma leitura de poder, capaz de mexer com coisas que há muito estavam adormecidas dentro do leitor. Uma história que choca realidade e fantasia de forma sensível, tornando-as quase indistinguíveis entre si.

Para ler e encontrar partes de nós que haviam se perdido.

"Vivia mais nos livros do que em qualquer outro lugar". - Gaiman

Sobre a Obra

Um homem sem nome volta à sua cidade natal para um funeral e se vê envolvido em memórias há muito esquecidas que recordam eventos ocorridos 40 anos antes.

O Oceano no Fim do Caminho e Sua Aplicação na Vida Real

+ Vivendo nos Livros

Me sinto privilegiado em pertencer ao círculo formado por aqueles que tiveram o privilégio de conhecer o mundo dos livros ainda na infância e que imergiram completamente nessa realidade para nunca mais voltar atrás. O momento em que a criança lê o seu primeiro livro é um marco de proporções inalcançáveis, o passaporte para uma realidade muito mais significativa, desbravativa, mais suportável. Crescer e ler são combinações com infinitos resultados distintos e que confere ao indivíduo poder para caminhar em um mundo repleto de contrastes com suficiente confiança e coragem. O próprio ato de ler já detém seu valor,  mas a leitura de livros o centuplica.

Na história contada por Gaiman, temos um protagonista cuja infância foi vivida nos livros. Sem amigos, com interesses mais elevados e uma paixão avassaladora pelos livros, nosso personagem está sempre tendo de lidar com a solidão e a rejeição. Ele também aprecia as diversões próprias da infância, brinquedos, jogos, HQ's de super heróis, mas sublevando todas estas está a leitura dos livros.

"Desde pequeno eu sempre pegava várias ideias emprestadas dos livros. Eles me ensinaram quase tudo o que eu sabia sobre o que as pessoas faziam, sobre como me comportar. Eram meus professores, meus conselheiros."

Por meio de seu personagem, Gaiman intenta transmitir ao leitor as maravilhas reservadas àqueles que leem, entre elas a capacidade de adquirir, na leitura dos livros, o suporte necessário para enfrentar problemas reais, as ferramentas específicas para lidar com adversidades no mundo real. Quando o mundo real nos sufoca, nos afoga em suas trevas, podemos sempre recorrer aos livros, um oceano no qual podemos nadar sem se preocupar com o exterior, onde obteremos conhecimento e viveremos experiências ao lado de grandes homens e mulheres e toda sorte de criaturas em todo tipo de situações. Nos livros o leitor encontra um intervalo entre a imutável realidade e a sempre inovadora ficção, onde a realidade é apresentada por meio de perspectivas mais otimistas e quando não, mais atrativas. Nesse sentido, livros são tão essenciais para a mente, estruturando-a, quanto os alimentos para o corpo, mantendo-o.

"Fui para outro lugar, em minha cabeça, para dentro de um livro. Era para onde eu ia sempre que a vida real ficava muito difícil ou muito inflexível"

+ Lidando com a solidão e a incompreensão

"Eu não era uma criança feliz, ainda que de vez em quando ficasse contente. Vivia mais nos livros do que em qualquer outro lugar."

Quando você se torna melhor em muitos aspectos, corre sempre o risco de ser rejeitado  e incompreendido pelas pessoas ao seu redor.

Gaiman não apresenta um motivo específico como causa da ausência de amigos do protagonista quando criança. Mas uma de suas falas nos dão alguma base para conclusões.

"Livros eram mais confiáveis que pessoas, de qualquer forma."

O receio de decepcionar-se com as amizades o levou a afastar-se. As pessoas decepcionam, magoam, falham, nos abandonam, portanto não são confiáveis e a melhor forma que ele encontrou para contornar essas ausências são os livros.

Dou tanto valor a amizade quanto aos livros, mas encontrar alguém disposto a ser amigo não é tarefa fácil em um mundo onde as pessoas estão cada vez mais distantes uma das outras em busca de satisfação pessoal, acúmulo material e convenções sociais. O risco de decepcionar-se ou ser abandonado, esquecido é grande, pois as pessoas estão sempre mudando seus interesses e sempre podem ceder às suas ambições egoístas. Também nesse contexto, os livros acabam sendo um substituto perfeito, uma verdadeira mensagem de esperança que nos impulsiona a continuar.

+ A infância na vida adulta

"Queria aquele ontem de volta, e queria isso com todo o meu ser"

"Quando é que nós deixamos de ser crianças para nos tornar adultos?" e "Para onde vai a criança que um dia esteve tão tangível?", são perguntas que me veem à mente, agora que reflito sobre a leitura. Por seu personagem, Gaimam nos mostra o quão problemática é a vida adulta e quantos contrastes existem entre a criança e o adulto, como se a infância e a vida adulta refletissem uma metamorfose inversa, onde a criança é a borboleta que voa, pousando de flor em flor e saboreando a variedade de néctar disponível e, em algum momento, acaba se transformando em uma lagarta, preocupada apenas em comer e comer e comer até a morte.

Assustador.

Aos sete anos, o protagonista consegue notar que há algo errado com os adultos e que eles não são tão felizes quanto deveriam ser, do seu ponto de vista. Logo, tornar-se adulto acaba por se tornar uma triste inevitabilidade.

"Nós tínhamos muito pouco em comum quando eu era criança, e tenho certeza que o deixava desapontado. Ele (pai) não pediu um menino com um livro, fechado em seu mundinho. Queria um filho que fizesse o mesmo que ele: nadar, lutar boxe, jogar rúgbi e dirigir carros velozes com impulsividade e satisfação, mas não foi isso o que ele acabou tendo."

Após 40 anos, tendo casado, já empregado, com filhos e todas as obrigações da vida adulta, o personagem sempre recorre às lembranças de sua infância, aos momentos bons e memoráveis, aos seus livros, seus personagens, brinquedos, canções, mostrando o quão importante é manter viva a chama da infância em nossas mentes, sempre recordando de um tempo antigo, se esforçando para trazer de volta um ontem que há muito tempo já se foi. Essa é uma de nossas mais importantes obrigações: voltar à infância na vida adulta.

+ A Fantasia e a realidade

Em um dado momento da história, elementos incomuns começam a permear o livro tornando-se cada vez mais presente.

- ÚRSULA

Um mal mortal que conseguiu penetrar na casa do protagonista em sua infância sob a forma de uma bela babá e que é a causa de dissenções, discussões, intrigas e traições. Úrsula pensa estar ajudando as pessoas ao dar a elas aquilo que elas querem, pensa que desse modo elas serão felizes. A exemplo, temos o episódio em que os membros das casas na vizinhança do personagem acabam, de formas diferentes, encontrando o dinheiro que precisavam ou desejavam, dinheiro que acaba se tornando a fonte de discussões e problemas familiares, problemas esses que surtem um efeito traumatizante na mente da criança.

Os adultos tendem a pensar que serão felizes quando encontrarem seu emprego ideal, quando satisfizerem seus desejos, quando acumularem dinheiro... pensam que a felicidade está na satisfação física e no acúmulo, mas não é assim. A felicidade não consiste no acumulo ou em ter tudo o que se pode desejar, mas em momentos, às vezes pequenos às vezes um pouco maiores, mas está nos momentos bons, em um história emocionante, em segurar firme a mão de um grande amigo, em um chá numa sala em boa companhia... momentos cada vez mais raros no mundo em que vivemos.

Por Henrique Magalhães

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